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segunda-feira, maio 16, 2011

Theateísmo




Proserpina, foto: Luciana Onofre



Thea [do termo grego Théas: Deusas; ismós: crença]


Aqueles que possuem como eixo de crença e culto às deidades femininas podem se autodenominar como Theateístas. Poderia apenas assumir o nome de religião matriarcal, ou religião da Deusa, entre tanto o termo Theateísta envolve em si um imenso coletivo de significados.
Ele se refere à crença, ao culto, à fé, a celebrações e práticas cotidianas onde a essência é uma ou mais de uma Deidade Feminina.                                           
Fato que liga este conceito diretamente ao Politeísmo e o faz corretamente, porém calhando de modo mais concreto este pela sua identificação pessoal para com Deidades Femininas.

Assim o Theateísmo mesmo que tenha em seu culto ao Feminino Sagrado, seja ele dentro de um panteão específico ou com mais de um, não recai dentro do conceito mais conhecido, mais evidenciado, de ser o mesmo que a religião Wicca.
Não deve ser entendida como vertente ou Tradição da religião Wicca por não atender aos princípios que essa religião orienta, não há uma necessidade premente por ritos cerimonialistas, ou de uma presença masculina dividindo celebrações no caráter  sacerdotal,  e o universo da Magia e Bruxaria é considerado como parte que pode ou não existir dentro da vivência sagrada de cada um.
O Theateísmo pode ser cultivado em esferas diversas e distintas daquela que é a religião Wicca, contudo um wiccano/a pode se dizer também Theateísta. 

Os movimentos femininos das décadas de 60 e 70 e cujos reflexos sentimos no hoje, perfazem ainda que distantes em tempo e geografia, o sentir espiritual do feminino pagão atual. Foi lá naqueles anos vestidos de roupas exóticas e movimentos libertários, que o Neo-Paganismo Feminino tomou formas, nasceu e perdurou… Não me refiro à história e registros antropológicos, mas a historicidade.
A historicidade é um conceito crucial para o entendimento da história, seja ela considerada “ciência” como queriam os estudiosos do século XIX, ou “narrativa verídica”, como definiu Paul Veyne. É a historicidade que dá caráter factual à vivência, em oposição à narratividade que cerca o homem; é aquilo que dá valor ao antigo apenas por ser antigo, e não por ter uma qualidade intrínseca - é o que define um mero objeto de um objeto histórico. Analisando a importância da história para o homem, Gadamer afirma: “o homem é, simultaneamente, o ser do passado remoto e o ser que vive no seu futuro como grande horizonte de expectativa e vasto campo de projetos que o seu ser modelado pela sua história lhe abre.” (GADAMER, 1988: 12). 
Esse ‘ser modelado pela história’, no entanto, é impensável sem a preocupação consciente ou inconsciente, para com a historicidade.

É partindo dessa historicidade que os movimentos daquelas décadas representam papel preponderante para nosso fazer pagão atual.
Em outras palavras, não devemos menosprezar a história recente do feminino e suas manifestações, mas considerar seriamente a representatividade que ativistas feministas dos anos 70 possuem no que hoje é o Neo-Paganismo Feminino.

Entendo que assim como eu, outras pagãs possam se encaixar no conceito do Theateísmo, que é também pagão por decorrer da necessidade inerente entre quem o pratica em resgatar os saberes matrifocais dos povos primevos, o que de certa forma pode ser compreendido por alguns como um reconstrucionismo, mas por não deter em si um rígido entendimento quanto às bases e pilares sobre os quais deva ser realizado esse resgate, quiçá não caiba nessa nomenclatura.

Mas em suma é em base às dinâmicas psicossociais e espirituais das culturas matriarcais e matrifocais que se erige a construção do Theateísmo. Estudos e pesquisas de culturas pré-históricas proporcionaram insumos para esse resgate, onde essas culturas são entendidas como culturas de paz e equidade entre gêneros. 
Cabe citar a personagens preponderantes nesse fazer arqueológico matrístico: Merlin Stone, Erich Neumann, Marija Gimbutas, Robert Graves, e ainda que muito se discuta a seriedade dos seus escritos, a James Frazer, que antecede aos primeiros no quesito interesse por esse tipo de estudo.                           
Eles, pesquisadores que focaram seus olhos nas culturas Europeias, Mediterrâneas e das regiões adjacentes. Eles que são compreendidos como pedra basilar nessa construção e resgate das culturas onde o feminino foi o núcleo, devem sempre ser lembrados, pois sem esse olhar arqueológico feminino, ainda a trilha do Theateísmo seria incipiente...

As culturas do matriarcado por terem a figura feminina como representação de eixo e liderança, e as matrifocais onde homens e mulheres possuíam o mesmo peso e permaneciam no mesmo status quo, se constituem nos modelos para a elaboração do propósito que orienta ao Theateísmo. Isto no que se refere aos papeis sociais, sexuais e espirituais atribuídos a mulheres e homens, ações que repercutem no sistema religioso não hierárquico, e talvez por isto mais aberto a práticas que podem ser coletivas ou não. 

A forma como é percebido o construto sobre uma deidade também depende da cultura de origem do praticante, ou da sua ideologia e identificação com panteões, no entanto por questões de coesão e harmonia, grupos que se dedicam ao culto de deidades femininas optam por centrar suas atenções naquelas que advieram de núcleos matrifocais.

De modo que não se deve confundir ou fundir o Theateísmo com a Tealogia, em vista de que esta última se dedica à pesquisa do Feminino dentro das culturas religiosas judaicas e cristãs. 

Dentro do movimento Neo-Pagão do século XXI, o Theateísmo pega emprestado muito do que foi elaborado pelos movimentos ativistas espirituais femininos como os encabeçados por Starhawk [Tradição Reclaiming], ZZ. Budapest [Dianismo], por exemplo, e por movimentos dentro do universo psicanalítico, onde podemos citar a seguidoras e revisionistas junguianas, como: Jean Shinoda Bolem; Marion Woodman; Christine Downing, entre outras.
Estas últimas que em suas analises pessoais e interpessoais resgatam o conceito da identificação da nossa psiquê e os arquétipos das deidades femininas oriundas em base à mitologia grega, mas que hoje em dia abarca a outras mitologias.

Pela semelhança se pode pensar que falamos do Dianismo. Com tudo tal suposição não é verdadeira, uma vez que o Dianismo é considerado pela sua genitora Zsuzsanna Budapest passível de apreensão como uma Tradição da religião Wicca, e não podemos esquecer que há no Brasil outras Tradições Diânicas, ambas Wiccanas. Assim como no Dianismo Feminista há a preferência pela não inclusão de homens em ritos diânicos. Então não é Dianismo. 
Há uma congruência, entre tanto, no que se refere ao conceito a ser elaborado e implementado, onde a mulher pagã se entende como um ser politicamente ativo, não apenas em relação aos direitos civis, mas ao resgate da sacralidade da Terra e de si mesma. Nisto o Dianismo e o Theateísmo coincidem.

Para muitas o termo mais próximo ao conceito do Theateísmo, seja nomear suas práticas particulares ou comunitárias como uma “Espiritualidade Feminina”, não obstante há o risco de que se entenda a essa Espiritualidade Feminina como sendo qualquer culto a um feminino, podendo incluir aqui ao Marianismo, fato que seria incorreto, considerando ser o Marianismo o culto a Maria, não na condição de deidade como é encarado o Sagrado Feminino dentro do Paganismo, mas sim como mãe de um deus monoteísta. 

A desambiguação quanto à dupla Theateísmo e Espiritualidade Feminina é necessária, e não há estudo religioso que seja simples de ser compreendido e internalizado apenas em base a uma leitura ou fala... 
Faz-se imperativa essa desambiguação pela semelhança que mora em ambas as vivências, pois o Theateísmo é a Espiritualidade Feminina em toda sua dimensão contendo-a, porém a condição inversa não é verdadeira, a Espiritualidade Feminina não é por derivação o mesmo que o Theateísmo, pelas razões que já foram expostas.

Quiçá se fuja da rotulação religiosa como uma forma de emancipação para com as crenças monoteístas patriarcais, por outro lado há grupos e coletivos que se sentem a vontade com o uso e adoção do termo, que classifica e identifica a esse coletivo com esta prática religiosa.
No que tange à mulher, esse encontro com o Theateísmo lhe investe de valor e significância. De valor pessoal, emocional, espiritual e ancestral.  A retira da esfera das simplificações patriarcais, proporcionando-lhe o direito a assumir uma outra religiosidade com nome, forma e historicidade. 

Por ela ser pagã e ter nascido no século XX, vir a ser cópia fiel de outras mulheres do passado, no que se refere à passividade perante a extirpação dos seus direitos, a desclassifica e coisifica.  Mencionar isto aqui advém da resistência que existe mesmo entre pagãos, para com a aceitação e legitimação da religiosidade Theateísta, e da mulher que a exerce como crença e fé.                                        
O machismo não pertence a credos, ele se faz onde a intolerância se deixa permanecer. A coisificação da mulher não se restringe a mídias, ela surge aonde haja discriminação e intolerância. Logo aceitar que mulheres assumam como religião ao Theateísmo é de grande importância, sobretudo em nichos considerados como abertos a diversas leituras de fé e de vida.

Os movimentos femininos que defendem a criação de Círculos se mostram epicentros energéticos dos conceitos matrifocais, gilânicos [aqui o trabalho de Riane Eisler lança luzes sobre o que é a gilania, sobre a fala da equidade entre gêneros, sobre as relações de parceria, que nos levam aos conceitos de Humberto Maturana e sua teoria da dinâmica da Matriz Biológico-cultural da Existência Humana], onde a manifestação matrística não se limita ao feminino, mas contêm em si ao masculino, um masculino que aceita um conviver de igual para igual, e de valorização da figura feminina. 

“Somos seres por natureza parida Matristicos, depois os rumos e trilhas nos separam desse primevo estágio”.
Humberto Maturana, no prefácio de 
O Cálice e a Espada” de Riane Eisler.


Círculos de Mulheres tais como os propostos pela escritora e psicanalista Jean Shinoda Bolen, em seu livro~poema “O Milionésimo Círculo” incitam a transpor barreiras rumo a um adentrar na Espiritualidade Feminina, onde seja pela ótica da psicanalise ou pelo caminho dum encontro com Thea[s], as mulheres em Círculo aprendem a se desfazer dos parâmetros hierárquicos que lhe foram cunhados na alma.  Aprendem a dialogar sem escalas, de igual para igual, em respeito quanto a tempos, falas, e conceitos.
Ela, a autora, incita a reflexão sobre o conceito bem formado interior, sobre cada um, ato que salva a mulher do auto silenciar-se, de omitir-se e perpetuar a nulidade dos seus direitos e a repetição cíclica da sua exploração massiva ou particular.

Seja em Círculos ou Grupos, ou em Groves, a construção espiritual feminina permite que impere a sensação elástica e ampla que libera um sentir-nos “estar em casa”, onde podemos manifestar dizeres que exteriorizam aquilo que já passou horas demais internalizado.

Tais movimentos circulares, espiralados ecoam de maneira impressionante, envolvendo até aos mais céticos. Acolhendo uma realização ideológica, espiritual, ativista e pagã que aceita a mulher tal como ela se mira, como ela se vê refletida em seus espelhos mutantes.

Reuniões circulares celebrantes de manifestações da natureza, onde a reverência pode recair na sacralidade da Terra, da Lua, de ritos sazonais, ou de honra a Deusas, atendem as múltiplas formas que as mulheres pagãs possuem; mulheres pagãs que se entendam ou não, a si mesmas como Bruxas, como Feministas, como Ecofeministas, dentro da vivência e realidade do Theateísmo, sem que esse entender seja indispensável para que ela, a mulher, seja Theateísta.

A construção ativista dentro da visão matrística é defendida e exercida em base ao conceito da “co-inspiração”, não observando ao extremismo e à contraposição de gêneros. Ou seja, podem homens dizer-se Theateístas sem que isso induza sua desmasculinização. 

Dentro da realidade brasileira é urgente citar a estudiosa e pesquisadora das celebrações panculturais do Sagrado Feminino, Mirella Faur,                           quem iniciou o movimento da religiosidade da Deusa no Brasil, facilitando encontros entre mulheres em rituais públicos ou reservados na cidade de Brasília. Deve ser esta pesquisadora inserida no elenco de personagens que construíram a Espiritualidade Feminina Pagã Brasileira, abrindo espaço para que muitas outras criassem coragem para assumir posturas, manifestar pensamentos e co-inspirar! 
A sua obra “O Legado da Deusa” serve para essa co-inspiração espiralada, serve de mola propulsora para muitas, que seja em solitário ou não, celebram o Feminino Sagrado.
Havendo muitas outras mulheres que em nosso hoje dilatam as trilhas do Theateísmo no Brasil, fazendo com que o tempo no qual para saber, viver e apreciar o Sagrado Feminino Pagão se fazia necessário olhar para fora, seja um tempo pretérito.
A ritualística deste Feminino é permeada por simplicidade, singeleza, silêncios eloquentes, ou festivais infinitos, realizados a solo, ou em Círculos onde a partir de duas mulheres já se cria um.

Círculos que se alimentam da unicidade que a mulher descobre entre ela e outras, gerando movimentos que visam reconstruir a imagem feminina tão machucada pelo meio e também por outras mulheres que conhecem tão só a realidade obtusa e ferrenha que lhe foi repassada por outra geração de mulheres. Logo esse movimento pela recuperação da imagem, da honra, da plenitude feminina, empodera a mulher e modifica sua maneira de se discernir e inserir no mundo, garantindo que ela se torne uma agente modificadora por sua vez de outras realidades, umas mais imediatas do que outras, mas a torna um ser crítico e ciente do seu valor pessoal e do seu direito a assumir com inteireza suas formas, sua vida.
Dentro desse elenco de movimentos modificadores e vivificadores, vemos a grupos de mulheres que se voltam para a sacralidade dos nossos corpos, primando pela desmistificação de temas como a menstruação, a menarca, a menopausa, o aborto, a morte.  Mostrando a naturalidade e o caráter inalienável que esses temas possuem.  E aqui também não é mais preciso olhar para fora dos limites do país, o movimento se faz aqui, com e para brasileiras.
Quiçá um livro que marcará diferença para sempre dentro desse reconhecimento do sagrado em nossos corpos seja o “Rubra Força” da psicanalista Monika Von Koss.  Faz da sua leitura uma ponte para um outro mundo e entendimento do que somos, como seres biológicos, históricos e espirituais.

A diversidade sobressai ao se falar de formas e focos a serem celebrados, entre tanto algo em comum entre os Theateístas é a criação, cuidado e zelo para com o altar em casa. E é especial perceber que ele não se esconde, ele se mostra com orgulho.  Ultrapassa o limiar das casas e se expõe aos outros, ou pela sua pequenez torna-se uno ao lar onde mora.

O Theateísmo defende o empoderamento da mulher, sem sobreposição ao masculino, assim famílias matrísticas podem vir a ser pauta em nossa sociedade, famílias onde mãe e pai dispõem deveres, direitos e espiritualidade num fazer circular, de igual para igual, permitindo assim que uma nova geração seja elaborada, criada e parida para o mundo. Uma geração que entende esse mundo como sagrado, livre e passível de reinvenção, e releitura. 

Uma releitura gilânica, matrística, Theateísta.


Luciana Onofre

São Luís, Maranhão, Brasil, 16 de maio de 2011.



Bibliografia Consultada
  • El Poder Mágico de las mujeres – Z. Budapest. Ed. Robin Book.
  • A Deusa Interior – Jennifer Barker Woolger & Roger J. Woolger. Ed. Cultrix.
  • A Deusa no Escritório – ZZ. Budapest. Ed. Agora.
  • Bruxaria e História – Carlos Figueiredo Nogueira. Ed. USC.
  • Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história – Paul Veyne. Ed. UnB.
  • História e Historicidade - H.G. Gadamer. Ed. Gradiva. Lisboa.
  • A Dança Cósmica das Feiticeiras – Starhawk. Ed. Nova Era.
  • O Milionésimo Círculo- Como transformar a nós mesmas e ao mundo - 
Um guia para Círculos de Mulheres – Jean Shinoda Bolen, M.D. Ed. Taygeta/Triom.
  • O Cálice e a Espada – Riane Eisler. Ed. Palas Athena.
  • Rubra Força – Fluxos do poder feminino – Monika Von Koss. Ed. Escrituras.
  • O Corpo da Deusa – Rachel Pollak. Ed. Rosa dos Tempos.
  • A Tecelã – Bárbara Black Koltuv. Ed. Cultrix.
  • O Livro de Lilith - Bárbara Black Koltuv. Ed. Cultrix.
  • Mãe Paz – Vicki Noble. Ed. Nova Era.
  • O Legado da Deusa – Mirella Faur. Ed. Rosa dos Tempos.


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5 comentários:

  1. Uau... esse texto foi bem explicativo... adorei, Lu!!
    (ps.: desculpa demora em dar feedback)

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  2. Excelente nota! Adorei leer-la! Voce fez uma investigacao impresionante, parabens! Grande beijo! XoXo

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  3. Lú se me permitir gostaria de reproduzir seu texto no meu Blog (http://hafsamahaila.blogspot.com/)
    Aguardo confirmação (ou não) =D
    Bjuss

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  4. Pri soomente hoje vi teu coment. podes sim! =)

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Textos e imagens aqui elencadas e publicadas refletem minha crença, minhas opiniões. Assim peço sejam respeitados como tal. Lembremos que incorrer em desrespeito público para com assuntos desta índole pode derivar em ações legais.

Luciana Onofre

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“La Diosa que hay en mi, contempla a la Diosa que hay en ti”